sábado, 7 de março de 2015

CONTOS DA GUERRA ESQUECIDA - O ENCONTRO

Acordou com o som do telefone; olhou o relógio de cabeceira, vendo que dormira quase doze horas; nos recados da caixa postal do celular reconheceu a voz pausada e profunda de Lisandro, o advogado do pai, que marcava um encontro para o fim da tarde no escritório dele. Lembrava da devoção e da fidelidade canina ao pai, que , na realidade, disfarçava a devoção por ela; se apaixonara desde seus tempos de jovem advogado recém-saído das Arcadas, com todo o mundo pela frente, mas ela cedo enterrara as ilusões dele; não nascera pra relacionamentos, nem mesmo pra compromissos; decepcionara-se com os poucos que tivera; não que fosse sem coração ou insensível; simplesmente sentira que não nascera talhada para aquilo.
Tomou uma demorada ducha, arrumou-se e saiu; levou mais ou menos uma hora pra chegar no escritório, num elegante prédio comercial de janelas de vidro negro; tomou o elevador e em minutos estava na sala de Lisandro, onde a secretária convidou-a a sentar-se e esperar, pois ele estava em uma chamada importante; ela reparou nos compêndios impecavelmente arrumados, as estatuas indianas que os separavam em grupos, a ampla mesa de mogno em que repousavam um peso de papel, uma estátua de Atlas de tamanho médio e embaixo dela uma pilha de pastas; imaginou a urgência daqueles processos, a ansiedade desmedida dos clientes;


Não demorou muito pra que ele chegasse, terno bem composto, cabelo grisalho e óculos de aro de metal; era a solenidade em pessoa; ela conjecturou se por acaso ele teria alguma vez, fora a intimidade dos dois, revelado algum tipo de emoção; ele sentou na cadeira reclinável de espaldar alto, cruzou as mãos e, tirando da gaveta uma pasta de papel pardo, a colocou na frente dela.
- Bem, Eliza, seu pai me deixou instruções precisas sobre algumas coisas que você precisa tomar conhecimento; imagino que você tenha lido a carta que eu entreguei no funeral.
-Sim, eu li – respondeu ela, com voz calma, a curiosidade remoendo – ele me explicou bem a respeito de tudo, mas a carta dizia que você teria outras informações...
- Isso mesmo – respondeu no mesmo tom solene – seu pai me nomeou seu testamenteiro e inventariante, de modo que muitos dos trâmites legais já estavam em andamento antes dele morrer.
Ele, então, abriu a pasta, espalhando ordenadamente o conteúdo sobre a mesa de mogno. Além da descrição do espólio e dos bens – que se resumiam ao apartamento que ela residia, na Constante com N.Sa de Copacabana, no sítio de Petrópolis e um sobrado em São Luis do Maranhão, além de dois terrenos em Angra dos Reis e um conjunto de aplicações e investimentos, que também incluíam lotes de ações ao portador de bancos empresas – o testamento e as disposições do pai, que nada tinham de novo; ele a nomeava sua única herdeira, além de separar uma parte dos investimentos pra ela e outra para o Asilo de Mendicidade em São Luís, além da transferência de uma quantia em dinheiro para uma pessoa chamada Albertina Ribeira, residente na cidade de Belém do Pará;
- Mas há mais – disse Lisandro, as mãos cruzadas sobre a mesa -  ele deixou igualmente isso – tirou então uma caixa de pinho e colocou-a na mesa junto om o envelope - mas o conteúdo nem mesmo eu sei; ele apenas me pediu que a guardasse e apenas depois que ele falecesse deveria ser entregue a você; as instruções de acesso estão neste envelope;
Ela tomou nas mãos a caixa e o envelope pardo lacrado, arrumando-os da melhor forma possível; Lisandro depois conversou de amenidades, como o casamento da sobrinha, a formatura do filho de um amigo e um projeto de ampliação do escritório; ela escutou tudo com cortesia, mas o pensamento estava longe, nas coisas deixadas pelo pai; Lisandro ainda não desistira dela; a solenidade disfarçava uma grande admiração ou mesmo amor, como ela, num momento, divagou; ela, porém, jamais se arrependeu de não ter alimentado esperanças, pois sabia que destruiria o homem que ele poderia ser com outra pessoa bem mais aberta para amar do que ela; ficou sem saber se a devoção dele era, de fato, amor ou seria apenas uma obsessão do ego. Despediu-se dele e retornou ao apartamento.
Não abriu imediatamente o envelope; a ansiedade, ela sempre lembrava o conselho do pai, poderia ser perigosa se não fosse contida, podendo fazer que se tomasse ou uma decisão errada ou se cometesse um ato precipitado; assim, depois de assistir televisão e jantar, leu algumas linhas dos cadernos de cultura dos jornais que tinham sido entregues pelo porteiro – ela só lia os jornais do dia quando ia se recolher para dormir -  mas, vencida pelo cansaço, caiu no sono.

O sol tocou-lhe o rosto, fazendo-a despertar levemente; o crepitar da vibração do celular quebrou a calma; era Júlia, a secretária, avisando da reunião com diretores de uma construtora que contratara o escritório dela para elaborar uma concepção diferenciada para lofts no centro, aproveitando os espaços dos prédios antigos; olhou o relógio; oito e quinze; ainda teria tempo para tomar café, mas seria no pequeno bar que ficava perto do escritório; a reunião estava marcada para as onze e meia, então ela ainda teria um pouco de tempo; depois de arranjar a caixa e o envelope em uma sacola, colocou–a no banco traseiro do carro e saiu à toda para o escritório. Diferente de Lisandro, que apreciava a madeira, ela era grande apreciadora de plástico e metal, materiais que fazia de inspiração para seus conceitos; minimalista, tudo na sala se casava a um espaço de utilidade prática; não havia espaço pra arte; peças de decoração aqui e ali, sem carregar demais, eram a marca do espaço dela.  A única concessão que fazia ao equilíbrio estilístico do seu escritório eram duas fotos emolduradas em sua mesa: uma, dela e do pai, tirada num verão na Churrascaria Plataforma, lugar que ele, religiosamente, sempre ia no último sábado de cada mês, refestelar-se nas iguarias que o lugar oferecia; ela, vegetariana convicta, apenas se aventurava nas saladas; a outra, emoldurada em metal prateado,  mostrava o pai na juventude, um sorriso amplo, de braços cruzados, chapéu desabado para a nuca; no canto inferior direito da foto, uma dedicatória onde se lia: “à minha querida  Adélia, pra diminuir um tanto a saudade; com amor, Silvano”; tinha sido um presente do pai, num dia que ele, num impulso, revirara suas lembranças e lhe dera a foto; impressionou-a o olhar iluminado, o sorriso idem; aquela imagem, ela sentia, era a página inicial de uma história de amor...



Ilustrações: Google Images/blacyblanc.blogspot.com

Um comentário:

  1. ...ver nascer um texto, vê-lo criando corpo e depois reler em sua impecabilidade não tem preço...privilégio de esposa...parabenizo e agradeço, thomé...com muito carinho para com seu talento imenso...

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A honra e o privilégio são meus...Muitíssimo Obrigado!!!